ARTIGOS | AS UNIÕES HOMOAFETIVAS E A APORIA NORMATIVA

DANILO DE OLIVEIRA

Advogado

Especialista em Direito Constitucional

Professor de Direito Constitucional, Administrativo, Tributário e Previdenciário

Coordenador da Comissão de Temas Previdenciários da OAB/SP – Subseção de Santos

AS UNIÕES HOMOAFETIVAS E A APORIA NORMATIVA

Para os adeptos da corrente segundo a qual as chamadas uniões homoafetivas demonstram-se, de acordo com uma interpretação construtiva da Constituição Federal de 1988, um fenômeno juridicamente reconhecido como apto a legitimar o status de entidade familiar, apresentamos mais um fundamento jurídico em sua defesa, baseado nos próprios argumentos dos adeptos da corrente contrária, isto é, daqueles que entendem que as uniões homoafetivas não são uma realidade digna de tutela jurídica.

A fim de elucidar o citado fundamento, imperiosa se faz a análise do fenômeno da lacuna, também denominada anomia ou aporia.

Já é superada a discussão acerca da existência, ou não, de tal fenômeno, sendo que atualmente é pacífico o entendimento de que há lacunas em nosso ordenamento jurídico, uma vez que expressamente previstas no artigo 4° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Decreto-Lei n°. 4.657, de 4 de setembro de 1942.

De extrema relevância é a conceituação da lacuna. Muito mais do que a simples ausência de norma, a lacuna, na verdade, corresponde a um grande gênero que abarca 03 (três) situações. Assim, temos que a lacuna é o fenômeno da impossibilidade de incidência da norma no caso concreto. Tal impossibilidade pode se dar por 03 (três) razões: inexistência de norma aplicável ao caso concreto, denominada lacuna normativa; inadequação da norma ao caso concreto, chamada de lacuna ontológica; e, por fim, a injustiça da norma em relação ao caso concreto, intitulada lacuna axiológica.

No que diz respeito às uniões homoafetivas, entendemos que não há norma  que vede expressamente a possibilidade de que sejam aptas a constituir uma entidade familiar, embora admitamos que este não seja o melhor argumento na defesa do instituto em voga, uma vez que, de modo geral, a Constituição Federal e a legislação correlata ao casamento e à união estável preceituam, basicamente, relações estabelecidas entre homens e mulheres, isto é, entre pessoas de sexo diverso.

Porém, omissão difere de vedação. O foco desta discussão consiste na omissão do artigo 226, § 3º, da Constituição Federal de 1988, o qual segue, “in verbis”:

Art. 226. “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.”

§ 3º – “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” (grifo nosso).

A Constituição Federal de 1988 expressamente prevê a família como base da sociedade, revelando que como tal, goza de especial proteção do Estado. Além disso, determina que, para fins de receber a referida proteção, considerá-se como entidade familiar, não só a união oriunda do casamento, mas também a união estável entre homem e mulher.

O Código Civil estabelece as regras inerentes ao casamento (Livro IV – Do Direito de Família, Título I – Do Direito Pessoal, Subtítulo I – Do Casamento), bem como à união estável (Livro IV – Do Direito de Família, Título III – Da União Estável) e assim como a Constituição Federal nada dispõe sobre as relações entre pessoas do mesmo sexo. Destacam-se os artigos 1.514 e 1.723 reproduzidos “in verbis”:

Art. 1.514. “O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.” (grifo nosso).

Art. 1.723. “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.” (grifo nosso).

(…) o Código Civil, que entrou em vigor em 2003, não regulamenta as
uniões homossexuais (…) limita-se a afirmar que o casamento se realiza no
momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a
vontade de estabelecer vínculo conjugal (CC, art. 1.514). Também é
reconhecida como entidade familiar a união estável entre um homem e
uma mulher (CC, art. 1.723)¹

Ainda que homossexuais estejam mobilizados e ativos na luta por seus
direitos, não lograram, sequer, ser inseridos no âmbito do sistema jurídico.
O reconhecimento das uniões, em que pese já ter ocorrido em outros
países, está afastado da realidade brasileira. ²

Para aqueles que entendem que não há o acolhimento da união homoafetiva pela legislação brasileira, a própria omissão legislativa veda o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, ou seja, os adeptos dessa corrente invocam como fundamento principal na defesa de sua posição a falta de
regulamentação legal do instituto. Maria Alice Zaratin Lotufo entende que:

(…) por falta de regulamentação jurídica não podemos afirmar que o direito
brasileiro acolha a união homossexual. (…) Na verdade, embora se possa
reconhecer a existência da afetividade entre aquelas pessoas e dignidade
em seus relacionamentos, esse reconhecimento não é suficiente para
considerá-las entidades familiares perante o direito positivo brasileiro e
aplicar-lhes a mesma disciplina³.

A argumentação para o não acolhimento das uniões homoafetivas como entidade familiar baseia-se também na interpretação de que é pressuposto básico para a formação da família o enlace entre mulher e homem, através do casamento ou da união estável, devendo haver em ambos a diversidade de sexos.

Primeiramente, no tocante à omissão normativa, ainda que inexista regulamentação jurídica acerca da união homoafetiva, tal circunstancia, por si só, não tem o condão de, de fato, inviabilizar a formação de entidades familiares por pessoas do mesmo sexo, pois consoante preceitua o artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988, nenhum particular pode ser coagido a fazer ou a deixar de fazer algo, senão por força de lei⁴.

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1 DIAS, Maria Berenice. União Homossexual O Preconceito & a Justiça, 3ª ed. rev. e atual., p. 53.
2 Idem.
3 LOTUFO, Maria Alice Zaratin. A Lei Brasileira Acolhe a União Homossexual? Jornal do Advogado. Agosto de 2005. Debate. p. 10/11.
4 CF, artigo 5º, inciso II: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.