ARTIGOS | AS UNIÕES HOMOAFETIVAS E A APORIA NORMATIVA

Logo, diante da ausência de vedação expressa à união homoafetiva e em consonância ao dispositivo supra, chega-se a conclusão de que, no mínimo, a legislação vigente não proíbe o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares. Assim sendo, se tais relacionamentos não são proibidos, são permitidos, ou seja, contam sim com amparo legal, ainda que não expressamente regulamentados pelo Direito Positivo.

Ausência de lei não quer dizer ausência de direito, e nem impede que se
extraiam efeitos. A falta de previsão específica nos regramentos legislativos
não pode servir de justificativa para negar a prestação jurisdicional ou de
motivo para deixar de reconhecer a existência de direitos⁵.

Se, hipoteticamente, diante da argumentação acima exposta, ainda entendamos pela inexistência de lacuna normativa, inegável é a constatação de que ocorrem as duas outras modalidades de lacuna, ontológica e axiológica, em se tratando das uniões homoafetivas.

É inegável que as normas relativas ao casamento e à união estável são inadequadas à atual realidade de nossa sociedade. As relações entre os indivíduos desenvolvem-se, como ocorreu nas relações homoafetivas. Situações tidas num primeiro momento como distorções sociais, atualmente, de forma pragmática, concreta, criam vínculos sociais e, via de consequência, jurídicos, na medida em que efetivamente formam uma verdadeira família.

Pode-se dizer que há a lacuna ontológica quando da inaplicabilidade da norma ao caso concreto, devido a uma inadequação do sistema jurídico que, por muitas vezes, não acompanha a evolução das chamadas situações da vida. É, sem sombra de dúvida, a hipótese do parágrafo anterior, em que o Direito, estático, não acompanhou as transformações da sociedade, a qual deve proteger por meio da imposição de regras de comportamento.

A sociedade não é inexorável, pelo contrário, seus valores são mutáveis, ao passo que ela evolui. Sendo assim, o Direito deve acompanhar a mutação desses valores, sob pena de distanciar-se de seu objeto: as relações entre os indivíduos que formam uma dada sociedade.

Deste modo, a legislação pertinente ao Direito de Família, tanto a  constitucional quanto a infraconstitucional, em relação às uniões homoafetivas, resta inadequada, pois não corresponde à realidade social contemporânea.

Quanto à lacuna axiológica, a norma existe, é adequada uma vez que adaptada, porém o seu valor difere do valor sistêmico do ordenamento jurídico, hipótese em que é injusta.

Caso ainda entendamos pela existência de normas e sua contemporaneidade
acerca do tema aqui discutido, é inegável que diferem dos valores de nosso sistema jurídico, pois obstar o reconhecimento de uma entidade familiar, ciente de sua dignidade, demonstra-se ato preconceituoso.

Além disso, negar proteção jurídica às uniões homoafetivas implica em exclusão injustificada que colide com a estrutura e com os preceitos oriundos de um Estado Democrático de Direito, pois consequentemente impede-se o acesso a inúmeros direitos, algo que foge da discussão meramente acadêmica, pois, pragmaticamente, implica em injustiças decorrentes de tratamentos desiguais.

Para melhor elucidar a exclusão acima apontada, segue tabela que é “numerus apertus”, ou seja, mero rol exemplificativo que tem apenas o escopo de demonstrar a situação de insegurança jurídica a qual são submetidas pessoas que optam em conviver numa união homoafetiva.

Tabela 1 – Não reconhecer a união homoafetiva como entidade familiar, para os homossexuais implica em que:

Tabela 1

 

Porém, mais importante do que conhecer as espécies de lacuna, é saber os seus efeitos. No nosso ordenamento jurídico, diante de uma lacuna adota-se o chamado sistema integrativo⁶, segundo o qual a lacuna exige a adoção de outra fonte do sistema jurídico.

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DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e o direito à diferença. Disponível em: <www.mariaberenicedias.com.br >. Acesso em 18/05/2006.

6 No nosso ordenamento jurídico não se admite o modelo do “non liquet”, ou seja, o magistrado não pode decidir por não decidir. Diante da lacuna não pode o conflito de interesses ficar sem solução, é necessário o provimento de mérito, através de sua procedência ou improcedência, preenchidas as condições da ação. Tampouco se admite o sistema suspensivo do processo, não podendo este permanecer suspenso enquanto se aguarda a elaboração de lei que trate do assunto que originou a lide.